Elas têm motivações diferentes e obstáculos maiores em relação aos homens que empreendem, mas podemos mudar essa história

O empreendedorismo feminino tem um dia especial, para ser celebrado mundialmente: 19 de novembro. Ele foi criado em 2014, como parte de uma campanha da Organização das Nações Unidas (ONU) contra a desigualdade de gênero no mercado de trabalho e tem o objetivo de dar visibilidade e ressaltar a importância das mulheres que empreendem. E falar de gênero no universo do empreendedorismo ainda é importante.

A pesquisa Empreendedorismo no Brasil de 2019, realizada pelo Global Entrepreneurship Monitor (GEM), mostrou que os homens estão à frente das mulheres na categoria empreendedores estabelecidos. Ou seja, aqueles ou aquelas que administram e são proprietários de um negócio considerado consolidado, que pagou salário ou contou com outra forma de remuneração para os proprietários por mais de 42 meses. Enquanto eles representavam 18,4% de empreendedores desse tipo, elas eram 13,9%. 

Ainda de acordo com o levantamento da GEM, quando o assunto são os empreendedores iniciais, a diferença entre homens e mulheres tornou-se pequena ao longo dos últimos anos, o que demonstra que elas estão chegando mais ao universo do empreendedorismo. Em 2019, ainda antes da pandemia de Covid-19, elas eram 26 milhões de empreendedoras, enquanto os homens chegavam a 29 milhões. Só que ainda não há motivos para comemorar. Segundo o levantamento, na passagem de empreendedor inicial para empreendedor estabelecido, há um maior abandono por parte das mulheres. Isso pode refletir o tipo de negócio escolhido por elas, ou até mesmo uma outra realidade: muitas mulheres começam a empreender por necessidade, para cobrir um momento de dificuldade financeira pessoal ou da família. Além disso, no modelo atual da nossa sociedade, elas ainda são as maiores responsáveis pelos cuidados com filhos e afazeres domésticos, reduzindo o tempo de dedicação ao próprio negócio.

“A grande parte das mulheres que empreendem decidem empreender porque o mercado de trabalho formal não absorve a mão de obra feminina. As empresas ainda não estão preparadas, principalmente, para o período de pós maternidade, o governo ainda não tem uma estrutura de creches que possibilite que essa mulher, depois que é mãe, consiga conciliar as horas de trabalho formal com as horas de cuidado com o lar, a família e a criança e a pandemia agravou muito esse cenário, onde o papel da mulher como responsável e cuidadora da família ficou mais evidente”, analisa Marcele Porto, doutoranda em Economia e consultora em educação empreendedora. Ela também é autora do livro “A Alma Feminina no Negócio”.

Por que incentivar o empreendedorismo feminino?

O Instituto Rede Mulher Empreendedora, que é a frente social da Rede Mulher Empreendedora, faz pesquisas anuais sobre o empreendedorismo feminino. A sétima edição do estudo, realizada de forma online em 2022, mostrou que a maior parte das mulheres empreendedoras é mãe, negra, tem entre 35 e 40 anos, pertence à classe C e tem escolaridade até o ensino médio. O estudo revela também que a maioria dos empreendimentos femininos nasceu nos últimos cinco anos, sendo 55% deles ligados à venda de produtos e 32% à prestação de serviços.

Ainda de acordo com a pesquisa do Instituto, 38% das mulheres que empreendem vivem na periferia e abriram um negócio por necessidade nos últimos dois anos. 

“Existem muitos perfis de mulheres que empreendem. Existe uma mulher que tem acesso, que tem herança, que tem um nível educacional maior e um nível de liderança. Essa mulher empreende por uma oportunidade de mercado e representa uma parcela bem pequena dentro do contexto do empreendedorismo. Há um número grande de mulheres que são microempreendedoras individuais, que fazem atividades para gerar renda e percebem essas atividades como um potencial negócio. E existe um terceiro grupo muito grande de mulheres que empreendem em atividades que geram renda, que não se percebem como empreendedoras, não conseguem olhar a venda de produtos ou de serviços, organizar e formalizar como pequeno negócio, que é a maior parte das empreendedoras em vulnerabilidade social”, explica a consultora Marcele Porto.

E um exemplo do que Marcele falou é o que acontece em duas regiões do país. No Norte, 75% das mulheres empreendem na informalidade e, no Nordeste, esse percentual é de 64%. Em todo o Brasil, apenas 50% das empreendedoras têm um CNPJ e 47% dizem não ter dinheiro para cobrir os custos com a formalização do próprio negócio.

“Quando a gente pensa nos desafios para as mulheres empreenderem, não podemos pensar que os desafios são únicos. A gente precisa olhar principalmente as questões de interseccionalidade, as mulheres negras, as questões que são muito mais históricas e intrínsecas ao comportamento feminino. E aí, quando a gente vê a maior parte das mulheres que empreendem e que são essas mulheres que fazem atividades para gerar renda e nem sempre são formalizadas, há uma grande questão de autoestima, de subsistência e a gente vê um empreendedorismo por necessidade, por sobrevivência”, alerta a consultora em educação empreendedora.

A fala de Marcele Porto em relação a maior parte das empreendedoras brasileiras é importante, diz muito sobre a realidade socioeconômica do país, mas não ignora as dificuldades enfrentadas também pelas mulheres que conseguem estruturar melhor o próprio negócio. 

“Quando a gente vê mulheres em outros perfis sociais, a gente vê como grande desafio ao empreendedorismo o descrédito. Os bancos concedem menos créditos à mulher se ela é empreendedora solitária. Se ela tem um sócio homem é muito mais fácil ela acessar um crédito. Então, dependendo da classe social, o desafio vai mudar, mas a grande questão em relação ao feminino é uma barreira cultural, uma barreira histórica, que tem tido uma evolução recente, nos últimos 40 anos principalmente, mas ainda existem muitos pontos a serem modificados”, afirma Marcele.

O que motiva mulheres empreendedoras?

Segundo Marcele Porto, em geral, os homens empreendem pelo sonho de ter o próprio negócio, ou por visualizar uma oportunidade no mercado. Sendo assim, o que mais difere homens e mulheres ao empreender é a decisão, a motivação para o empreendedorismo. 

“Fora a mulher que empreende por necessidade, por ser chefe de família, como já falei antes, a mulher vai buscar criar algo para compensar uma deficiência no mercado de trabalho formal. Algumas são muito qualificadas, não conseguiram acessar postos de liderança e tomam decisão de criar a própria empresa, criando a própria história. Ou ela foi mãe, voltou, foi demitida e vai buscar criar um negócio. Ou foi mãe, se viu num momento em que não consegue acompanhar o crescimento dos filhos e voltar ao mercado de trabalho formal e ela abre um negócio. Então, em geral, o empreendedorismo para a mulher parece ser a única opção possível para que ela exerça esse papel de liderança e essa posição que permite uma flexibilidade para que ela equilibre os papeis em relação à família e ao desejo de sucesso profissional”, exemplifica a consultora em educação empreendedora.

A maternidade foi o que motivou Fernanda Silva a investir na “Sonhos de Maria”, microempresa no Rio de Janeiro voltada para bolos e doces para festas. 

“Decidi empreender para ficar mais tempo com a minha filha e vê-la crescer, afinal eu trabalhava de dez a 12 horas por dia”, relembra Fernanda.

Na pandemia, ela aproveitou o momento em que muitas pessoas precisaram ficar e trabalhar de casa para ampliar as possibilidades e investir também em refeições por entrega. A maior parte dos clientes da “Sonhos de Maria” é formada por mulheres. Para Fernanda, o motivo é claro e vai ao encontro do que já falamos sobre o papel cultural e histórico delegado à mulher. 

“Na maioria das vezes, são as mulheres que organizam as refeições e festas da casa”, afirma a empreendedora. 

A importância das redes de empreendedoras

Para apoiar mulheres empreendedoras, existem iniciativas importantes de âmbito nacional. A consultora em educação empreendedora, Marcele Porto, destaca três delas.

“Já existe um grande movimento de apoio no consumo, parceria e contratação de serviços que vem sendo muito estimulado pela formação de redes femininas. A Rede Mulher Empreendedora tem grande parte no sucesso desse movimento onde mulheres conseguem se conectar para falar de negócios. Quando a mulher começa a circular nessas redes de networking, cada vez mais ela começa a dar valor, tanto para estabelecer parcerias, quanto para consumir dessa rede. Então, o Sebrae vem num grande movimento em relação a isso, a Rede Mulher Empreendedora foi muito pioneira, tem o Grupo Mulheres do Brasil, que eu acho que são três grandes redes que movimentam esse contexto, mas existem muitas outras. A cada dia surge um novo polo, um novo movimento”, afirma Marcele.

A Rede Mulher Empreendedora (Home – Rede Mulher Empreendedora (rme.net.br) foi criada em 2010 por Ana Fontes, que, antes, já havia criado um blog para falar do empreendedorismo feminino. Além de uma referência para unir mulheres que empreendem, a rede conta com projetos e promove ações como mentorias e eventos. 

Já o Sebrae, uma grande referência na formação e apoio a empreendedores em todo o Brasil, desenvolveu o “Sebrae Delas” (Empreendedorismo feminino – Sebrae), um programa de aceleração voltado para micro e pequenas empreendedoras, ou mulheres que planejam abrir o próprio negócio.

Por fim, o Grupo Mulheres do Brasil (Grupo Mulheres do Brasil – Protagonismo que transforma.), criado em 2013 por 40 mulheres de diferentes segmentos, se apresenta como uma rede suprapartidária feminina e que defende a liderança da mulher. Ele é presidido pela empresária Luiza Helena Trajano e tem iniciativas diversas de apoio às mulheres com o objetivo de promover mudanças sociais, inclusive por meio do empreendedorismo.

Tecnologia a favor da mulher empreendedora

A tecnologia é uma grande aliada na construção de pontes entre mulheres que empreendem. Os sites, comunidades, redes sociais e até grupos de Whatsapp são bons recursos para a troca de experiências, como explica Marcele Porto.

“Eu tive a oportunidade muito feliz de ter sido facilitadora e mentora do programa ‘Mulheres com Propósito’, uma iniciativa da FUNDES com a PepsiCo na América Latina que capacitou e certificou 12 mil mulheres com o mesmo conteúdo, voltado principalmente para empregabilidade, mercado de trabalho e empreendedorismo. Esse curso conectou essas mulheres e existem grupos de Whatsapp até hoje onde elas trocam erros, acertos, desafios, oportunidades de mercado…o movimento online e a naturalização dos cursos online promovida pela pandemia reforçaram e estimularam esse apoio e essa troca”, considera a consultora. 

E, como citamos as redes sociais, vale lembrar que investir nelas é importante para o marketing do negócio e até pessoal. 

“As redes ajudam a ampliar essas vozes, a divulgar e a tornar visível o trabalho dessas mulheres e desses pequenos negócios de uma forma muitas vezes gratuita”, lembra Marcele.

Uma ajuda a outra

Mesmo que você não empreenda ou não esteja em nenhum grupo ou rede de apoio ao empreendedorismo feminino, é possível incentivar as mulheres que estão tocando o próprio negócio. Se você ainda não tem esse hábito, pode começar a partir de agora por meio de atitudes simples:

  • prioridade à compra de produtos ou à contratação de serviços de mulheres, principalmente daquelas que são donas de um pequeno negócio. Por exemplo: quer comprar bolos e doces para uma festa? Que tal fortalecer aquela confeiteira do seu bairro ao invés de comprar em grandes redes?
  • Indique o trabalho das mulheres empreendedoras. Se você comprou algo ou teve a experiência de um bom serviço que tem uma mulher à frente, passe a dica adiante para quem precisa;
  • Divulgue publicamente uma mulher empreendedora. Fale do produto ou do serviço em grupos de Whatsapp ou até nas redes sociais;
  • Valorize o trabalho de uma mulher empreendedora. Dê retorno sobre o produto ou serviço, elogie, ou até mesmo faça críticas construtivas para melhorar;

E se você é empreendedora também, contrate mulheres e esteja em contato com outras, para ajudar a fazer uma realidade diferente e melhor para o empreendedorismo feminino no Brasil.