Simone Ponce: da violência doméstica à criação de um marketplace de refeições caseiras

Cofundadora da Eats for You, mato-grossense ignorou sua condição de vítima e hoje, além de tocar o negócio, ajuda outras mulheres
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Simone Ponce, cofundadora do marketplace de refeições caseiras Eats for You (Foto: Divulgação)

Às 8h, quando Simone Ponce, cofundadora do marketplace de refeições caseiras Eats for You, entrou na chamada de vídeo para conversar com a Elas Que Lucrem, seu dia já havia começado há, pelo menos, três horas. Antes do sol nascer, ela já estava de pé para começar sua rotina diária de fisioterapia, treino e meditação – e, acredite, esse hábito não tem relação alguma com o famoso “5am Club”, movimento de CEOs que levantam cedo para fazer o dia render. Portadora de fibromialgia crônica após um trauma físico decorrente de violência doméstica, Simone segue uma disciplina rigorosa para que seu corpo consiga lidar com as dores musculares da doença reumatológica. 

“Aos 19 anos, fui espancada por um familiar. Depois disso, desenvolvi fibromialgia e um trauma cervical. Falam que meu destino é a cadeira de rodas, mas eu me recuso a acreditar nisso. Por isso sigo essa disciplina matinal”, explica Simone, emocionada ao falar sobre as consequências da violência que sofreu. “Quando a crise vem, vou para o hospital, recebo 10 injeções na coluna e fico paralisada. É incapacitante. Não dá nem para pentear o cabelo sozinha. Então, eu decidi que precisava me fortalecer. Comecei a fazer exercícios e consegui até me tornar maratonista. Isso me traz independência. Perigoso é ficar parada e aceitar.” 

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Mas, por mais que esteja ciente do que é melhor para si, Simone revela que nem sempre é fácil manter a mente positiva. A síndrome fibromiálgica está associada a outros sintomas, como fadiga, alterações do sono, depressão e ansiedade. Às vezes, a executiva assume que a vontade é ficar na cama o dia inteiro. Em outros momentos, chega a duvidar do seu potencial como mulher e profissional. “Sou formada em relações públicas, especialista em gestão de projetos e mestre em marketing internacional. Mesmo assim, preciso me policiar para não colocar minha capacidade em xeque.” 

Cofundadora e vice-presidente de negócios do marketplace de refeições caseiras Eats for You, que desde 2018 já contabilizou mais de 200 mil refeições vendidas e gerou mais de R$ 2 milhões de renda formal para os cozinheiros e cozinheiras cadastrados em sua plataforma, Simone também tem passagens por companhias como Uber e Prudential, além de ter atuado na organização de eventos como o Super Bowl e a Copa do Mundo no Brasil. A brasileira foi tão longe que chegou a ser convocada pela Casa Branca durante a gestão do ex-presidente norte-americano Barack Obama para organizar um evento de empreendedorismo social. Aos 35 anos, completamente estável profissionalmente, ela conta que, por muito tempo, tentou manter sua vida pessoal distante do trabalho, até perceber que não era saudável ter uma vida dupla. 

DUAS EM UMA

A mulher de sucesso é a mesma menina que cresceu sofrendo violência doméstica. Não foi fácil entender que esses dois rótulos andavam juntos, por isso Simone gosta de contar sua trajetória na íntegra. Sem cortes no roteiro. “Eu não vou chegar aqui e dizer que é fácil. Que é preciso apenas pensar positivo para que todos os traumas desapareçam. Não é simples assim, mas é possível endereçar esses sentimentos. Minha história é a maior prova disso.” 

Nascida em Cuiabá e criada em Tangará da Serra, no Mato Grosso, Simone sempre foi considerada uma criança curiosa e, consequentemente, questionadora demais. “Esse não era um comportamento compreendido pelo conservadorismo da época. Parecia uma afronta porque, algumas vezes, as pessoas mais velhas não sabiam a resposta do que eu estava perguntando”, conta a executiva. Quando isso acontecia, a situação sempre acabava em violência física ou psicológica. Embora a curiosidade seja uma característica comum entre crianças espertas, a menina cresceu ouvindo que era burra. Quando questionava algo em casa, acabava voltando para o seu quarto sem a resposta e com um novo adjetivo negativo sobre seu raciocínio lógico. 

Aos 14 anos, ela sentiu – pela primeira vez – que sua vida estava finalmente tomando o rumo certo. Teve a oportunidade de fazer um intercâmbio em Londres, onde sua visão de mundo se abriu. “Como voltar para o Mato Grosso depois dessa experiência?”, brincou ela ao relembrar uma fase de sonhos. Como seu irmão mais velho estava morando em Curitiba (PR) para estudar medicina, a adolescente também se mudou para a capital paranaense tão logo retornou ao Brasil, em busca de escolas e oportunidades melhores. Longe de sua cidade natal, no entanto, a violência não só continuou como foi ganhando novas proporções, até que foi espancada ao pedir para mudar o canal da televisão. 

“Todo mundo me pergunta o motivo, mas realmente não existe um. Eu tinha feito o almoço e queria relaxar um pouco no sofá assistindo TV. Apenas pedi para mudar o canal e acabei espancada e estrangulada.” Já no hospital, Simone não contou o que tinha acontecido. Assim como aprendeu a vida toda, silenciou a violência sofrida porque sabia que não tinha condições de se manter sozinha em outra casa. “Fiquei oito meses trancada no quarto com medo de sair e apanhar de novo. Saía apenas para trabalhar e tentar ganhar independência.” 

Um ano mais tarde, enquanto cursava relações públicas na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e trabalhava na área, a jovem conseguiu alugar um espaço para morar sozinha e finalizar sua graduação. Foi nesse meio tempo que começou a sentir dores crônicas, descobriu a fibromialgia e iniciou uma nova batalha contra as consequências de uma doença que reduz muito a capacidade de trabalho. Em 2009, formada há dois anos e já habituada à uma rotina de treinos diários para o fortalecimento do corpo, voltou ao Mato Grosso para cuidar da mãe, que não estava bem de saúde. 

Sem muitas oportunidades de emprego na região, precisou se reinventar profissionalmente. “Comecei a observar a movimentação do país surgida com o anúncio de que o Brasil sediaria a Copa do Mundo de 2014. Como os jogos seriam realizados em vários estados, pensei que essa seria uma ótima oportunidade para oferecer meu conhecimento em relações públicas ao Mato Grosso”, lembra. “Eles precisavam entregar uma obra com nível de excelência e provar transformação social nesse processo. Esses eram os indicadores FIFA. E foi isso que eu me propus a fazer.”

Nos quatro anos de trabalho árduo até o início do mundial, Simone desenvolveu um programa de inserção de egressos da escravidão – uma grande preocupação nos canaviais do Mato Grosso – em obras para a competição. “Foi um trabalho com muito cuidado, porque não é uma simples reinserção. Essas pessoas não tinham vivência no nosso mundo, então promovemos educação, capacitação, acesso à saúde e contato com a sociedade, como um simples passeio ao cinema ou um lanche no shopping. Foi um projeto lindo, que chegou a ser reconhecido pela ONU.” 

NOVA REVIRAVOLTA

Pelo destaque que ganhou naquele período, Simone começou a se envolver com organizações globais e, em 2015, conseguiu uma vaga para cursar um mestrado em marketing internacional em São Francisco, na Califórnia. 

Mais uma vez fora do Brasil, trabalhou na organização de uma das edições do Super Bowl e, finalmente – mas não menos importante -, em um dos últimos eventos da gestão do ex-presidente norte-americano Barack Obama. “Fui convidada pela Casa Branca para organizar um evento de empreendedorismo de impacto social. Pequenos empreendedores do país inteiro eram convidados para uma conexão com investidores do Vale do Silício com articulação do governo norte-americano. Ali, meu mundo se abriu mais uma vez.” 

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No final de 2016, de volta ao Brasil, Simone trouxe um objetivo na bagagem: criar um negócio de impacto social. Em conversa com o publicitário e amigo Nelson Andreatta, a ideia da Eats for You começou a ganhar forma. “Observei que os produtores locais, fosse no Mato Grosso ou em São Paulo, cozinhavam alimentos maravilhosos e lucravam pouco com isso. Eram produtos que não chegavam até o público consumidor”, explica. 

A partir dessa percepção – e de muita conversa para estruturar um negócio viável – surgiu a ideia de criar um marketplace de refeições caseiras, com o objetivo de conectar cozinheiros a pessoas que buscam alimentação para o dia a dia. Um projeto que ajuda tanto os pequenos produtores quanto os consumidores interessados em refeições mais acessíveis e menos industrializadas. 

Fundada em 2018, a startup já contabilizou mais de 120 mil refeições vendidas e gerou mais de R$ 1,5 milhão de renda formal para os profissionais cadastrados na plataforma. No entanto, Simone não ficou 100% focada na empresa nos últimos três anos. Sentindo que precisava de bagagem de mercado para oferecer o melhor para a Eats for You, trabalhou por dois anos na Uber como líder global de operações de alta complexidade e por mais de um ano na Prudential, como head de estratégia e operações. Quando a pandemia começou, no entanto, ela não fazia ideia de que passaria por um dos momentos de maior desafio pessoal e profissional de sua vida. 

“No meio do ano passado, eu caí de uma escada e fui parar no hospital. Achei que um simples analgésico resolveria, mas minha fibromialgia atacou e eu tive uma crise muito forte”, conta. “Naquele momento, tudo o que eu tinha vivido na infância e na adolescência – e que eu achei que já tinha superado – transbordou. Eu percebi que minha vida profissional estava teoricamente resolvida, mas meus traumas não.” Na hora do acidente, Simone se deu conta de que ninguém do trabalho sabia sobre a sua doença. Trabalhava incessantemente – quando caiu, inclusive, estava imersa em uma típica rotina paulistana, com milhões de demandas na cabeça e um café da manhã rápido nas mãos, enquanto tentava descer uma escada -, e tratava a doença como algo que precisava ser escondido e com o qual precisava lidar sozinha.

Além dos remédios para dor, foi nesse período que a executiva começou a cuidar de sua saúde mental. “Outras pessoas podiam estar se sentindo assim também, e eu estava lá me escondendo em uma fortaleza que criei. Ao olhar para a oportunidade de voz que eu tinha e para a situação da pandemia, pensei que aquilo não podia continuar. Eu precisava ser um instrumento de transformação”, recorda. Com isso em mente, começou a contar a sua história como forma de tratar seus traumas e acolher outras mulheres. Era hora de falar sobre tudo aquilo que havia sido silenciado por tantos anos. Ser vítima de violência doméstica não é sinônimo de fraqueza. 

Na Prudential, pôde usar dessa visão centrada na saúde mental para criar um aplicativo para o bem-estar dos funcionários – o que a colocou de volta no caminho do empreendedorismo. Com experiência de mercado adquirida – e a mente sob controle -, sentiu que era hora de centrar 100% de sua atenção novamente na Eats for You. Desde 2021, trabalha integralmente como vice-presidente de negócios e VP of Business na startup que cofundou. 

“Além de ajudar no dia a dia das pessoas com a empresa, fazemos várias ações sociais. No último final de semana, por exemplo, levamos alimentação para crianças indígenas. Durante a pandemia, processamos mais de 15 toneladas de alimentos para doação.” Até o momento, a startup atua em sete cidades brasileiras, mas pretende elevar esse número para 10 até o final do ano. “Estamos ampliando nossa pegada e fazendo diferença na vida das pessoas.” 

Mais do que isso, Simone se orgulha de conseguir fazer a diferença na vida de outras mulheres com a sua história. Lidar com os traumas da violência é uma luta diária, mas ela sabe que seu perfil como mulher de sucesso é recheado de valor – e não de vergonha. “Estou à disposição para conversar com qualquer mulher que esteja precisando. Minha história é muito triste para mim, mas é linda no mundo”, finaliza.

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