Ao mesmo tempo que a fome castiga mais de 690 milhões de pessoas no mundo, o desperdício de comida atinge níveis extremos. Só em 2019, 931 milhões de toneladas de alimentos foram jogadas fora, o equivalente a 17% do total disponível aos consumidores, segundo a mais recente edição do Índice de Desperdício de Alimentos, publicado pela Organização das Nações Unidas. Segundo a entidade, essa quantidade seria suficiente para encher 23 milhões de caminhões de 40 toneladas e enfileirá-los sete vezes ao redor da Terra.
Essa quantidade se refere apenas às sobras alimentares nos pontos de venda, restaurantes e residências. Se a contagem incluir também as etapas de produção, pós-colheita, armazenamento e transporte em âmbito mundial, o volume aumenta para 1,3 bilhão de toneladas. A Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO-ONU) calcula que esses alimentos seriam suficientes para alimentar 2 bilhões de pessoas.
Para atingir esse objetivo, a nutricionista Heloisa Guarita, que tem 20 anos de atuação no desenvolvimento de soluções e inovações para as cadeias produtivas de alimentos, está desenvolvendo uma plataforma de investimento para startups voltadas à diminuição e controle do desperdício.
“O alimento é minha paixão. A indústria trouxe a possibilidade de alimentar a população e há quem diga que a produção tem que continuar crescendo para alimentar todo mundo. No entanto, um terço é desperdiçado, então não faz sentido. Não é preciso produzir mais, mas rever a cadeia e buscar soluções para o desperdício”, diz. Segundo ela, o momento de criar novas formas de produzir e consumir é agora.
A nutricionista tornou-se empreendedora ao fundar a RGNutri há duas décadas, consultoria e desenvolvedora de soluções para a indústria alimentícia. “Sempre tive um pé na inovação, estratégias e evolução. A RG busca direcionar o olhar para quem está de fora da produção e trazer o do consumidor, conectado com a ciência e a nutrição”, explica.
O negócio fez sucesso e conquistou gigantes da indústria, como Bauducco, Quaker, Piracanjuba, BRF e Tirolez. “Foi quando entendi os sistemas alimentares, pude ver como muita coisa funciona. É um assunto complexo, cheio de movimentos e etapas”, diz a empresária. “Nossa razão principal sempre foi o consumidor, então pensamos em como inovar e fazer parcerias com clientes com esse olhar estratégico.”
E é com estratégia, inovação e conhecimento que Heloisa está embarcando no mundo dos investimentos em startups, trazendo a bordo sua principal paixão: os alimentos e sua valorização. “Há alguns anos venho investindo em startups e empreendimentos que contribuam para o sistema alimentar, com soluções para o problema do desperdício nas cadeias produtivas”, conta. Na sua visão, a indústria se empenhou muito no aumento da produção e agora está na hora de repensar esse modelo.
“Por que um tomate que está um pouco menor do que os demais é jogado fora antes de ser transportado? O consumidor final pode até não querer usá-lo em sua casa, mas ele pode ser aproveitado para fazer molhos, por exemplo, em uma empresa que trabalha com isso”, diz, enfatizando a necessidade de ressignificar a forma de produzir e os hábitos alimentares, tanto em casa, quanto no varejo e nos restaurantes.
“Para quem joga fora, esse alimento não traz nenhum ganho, mas tem muitas oportunidades financeiras e comerciais nesse processo. Isso se aplica para todos os frutos e legumes imperfeitos. É preciso repensar a cara da comida.”
Assim, o próximo passo de Heloisa com a RGNutri é desenvolver uma plataforma de mobilização sobre desperdício para acelerar as mudanças necessárias no ecossistema de produção de alimentos. “A ideia é criar conexões entre especialistas no assunto e investidores para atingir o maior número de pessoas e recursos em busca de soluções inovadoras e disruptivas.”
Para a empresária, existe uma movimentação dos investidores e consumidores pela busca por produtos menos danosos ao planeta, não só pensando no desperdício, mas em todos os aspectos sociais. “A pandemia e essa pausa provocada por ela aceleraram a questão do ser humano frente ao seu papel no planeta, nos obrigou a repensar o que consumimos, de quem consumimos e o impacto que isso causa. Quando pensamos em grande escala, a cobrança por essas mudanças vem de movimentos globais em nome do clima e da saúde, algo que também influencia o investidor. Isso se tornou um critério importante das bolsas de valores e os investidores passaram a cobrar a indústria. E ela precisa dar uma resposta.”
Para a empreendedora, a partir do momento que o topo da indústria passa a ser cobrado e obrigado a encontrar soluções sustentáveis, isso reverbera de forma geral. “Muda a cadeia de valor da produção e isso é comunicado de muitas formas para o consumidor, o que leva a sociedade a ter mais clareza da importância dessas mudanças e de estar atento a esse tipo de processo produtivo.”
É por isso que, além da plataforma, Heloisa criou em sua empresa um hub de inovação e aposta em startups voltadas à valorização e combate ao desperdício de alimentos. “Comunicar esse movimento também é importante”, diz.
Entre as suas opções de investimento, Heloisa conta que tem uma certa preferência por empresas com foco no desenvolvimentos plant-based (à base de plantas), ou seja, alimentos 100% vegetais. E isso não por acreditar que a proteína animal vai deixar de existir, mas porque a proteína vegetal é um caminho que propõe a reutilização de alimentos e uma mudança alimentar.
A investidora também aposta em startups preocupadas com toda a cadeia produtiva e foco na valorização do produtor, como a duLocal, iniciativa que une pequenos fornecedores do campo a cozinheiras de Paraisópolis, comunidade na extrema zona sul de São Paulo, com o objetivo de gerar emprego e renda local. Outro de seus investimentos é na startup Biozer da Amazônia, voltada a produtos naturais – incluindo alimentos funcionais – feitos pelos povos da região como forma de gerar empregabilidade e diversificar o prato do consumidor.
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