EQL Entrevista: Bianca Lenti, diretora de “Apenas Meninas”, doc que conta a história de sete brasileiras vítimas de casamento infantil

Sócia da produtora Giros Filmes fala sobre as dificuldades e as expectativas de uma produção de impacto
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“Apenas Meninas” é o primeiro longa-metragem de Bianca Lenti após mais de 20 anos de carreira no audiovisual (Foto: Divulgação)

Atrás apenas da Índia, Bangladesh e Nigéria, o Brasil ocupa o quarto lugar no ranking mundial de números absolutos de mulheres que se casaram ainda na infância. Segundo dados da Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher (PNAD), 3 milhões de brasileiras com idades entre 20 e 24 anos se casaram antes dos 18, o equivalente a 36% do total das mulheres casadas nessa faixa etária no país. 

Segundo a legislação brasileira, a idade legal para o casamento é de 18 anos, tanto para homens quanto para mulheres – aos 16, o enlace só é permitido com o consentimento de ambos os pais ou responsáveis legais. 

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Mais do que alarmante em termos numéricos, o quadro de casamentos infantis no Brasil é alimentado por questões ainda mais conflitantes. Diferente dos três primeiros países do ranking, que são motivados pela cultura ou religião, o cenário no Brasil é impactado pela vulnerabilidade social e pela extrema pobreza, o que leva a uma reflexão ainda mais complexa sobre os fatos. 

Quando a cineasta Bianca Lenti, sócia da produtora Giros Filmes, ficou sabendo do lugar que o Brasil ocupava nesse ranking, a inquietação começou a fazer parte de seus dias e noites. Foi a partir daí que a diretora decidiu fazer um documentário contando as histórias de sete mulheres – e meninas – que vivenciaram na pele os impactos do casamento na infância. Primeiro longa-metragem de Bianca após mais de 20 anos de carreira no audiovisual, o título “Apenas Meninas” está sendo lançado hoje (26), na plataforma de streaming HBO Max. 

A Elas Que Lucrem conversou com Bianca sobre as dificuldades e surpresas durante a produção do documentário, além de suas expectativas para o lançamento. Confira, abaixo, a entrevista na íntegra: 

EQL: Como e quando surgiu a ideia de fazer um documentário sobre casamento infantil? 

Bianca Lenti: Em 2017, eu fiquei sabendo sobre o dado chocante de que o Brasil é o quarto país do mundo em casamento infantil. Somos uma produtora que produz filmes de impacto – “filmes causa”, como a gente chama. Temos uma equipe 95% feminina na empresa, então esse assunto chamou muito a nossa atenção. Conversamos e decidimos fazer um teaser sobre o tema, experimentando a linguagem que usaríamos se o material se tornasse um documentário. Ali, já entendemos que teríamos que ser muito lúdicos e muito poéticos, porque estaríamos contando histórias fortes, e é justamente isso que tem no filme: sete histórias fortes. 

Fizemos um teaser lindo utilizando a rotoscopia, um recurso no qual os momentos mais pesados das histórias foram transformados em animação. Aqueles momentos em que elas ficaram realmente invisíveis para a sociedade. Essa é a grande premissa do filme. Essas mulheres buscam o casamento como rota de fuga porque são invisíveis para o Estado e para a sociedade. Então, elas acabam desejando o casamento como um pedido de socorro. É uma rota de fuga, não é um desejo profundo. O único desejo é salvar a própria pele e sobreviver. Nesses momentos mais pesados, elas ficam “invisíveis”, perdendo suas texturas e seus volumes e ficando apenas no contorno. Levamos esse recurso poético para a HBO no final de 2016 e eles compraram de cara a ideia. Depois disso, teve o processo da Agência Nacional do Cinema (Ancine) para liberar o dinheiro e nós filmamos o documentário ao longo de 2018. 

EQL: Como foi a apuração? 

BL: A parte mais demorada foi a etapa de pesquisa, porque tínhamos o Brasil todo para procurar e escolher nossas personagens. Precisavam ser meninas e mulheres – temos personagens de 15 a 40 anos no filme – que estivessem dispostas a contar suas histórias. Além disso, as narrativas tinham que ser diferentes entre si, para não ficar repetitivo, já que a qualidade de vida dessas mulheres é muito parecida. O processo foi longo, mas no final das contas escolhemos as sete meninas certas para falar. 

O processo de pesquisa foi até maio e começamos a filmar em junho de 2018. Filmamos até dezembro e, em 2019, começamos a montagem. No início da pandemia, o filme já estava pronto para ir ao ar, mas acabou atrasando por conta da crise sanitária. Nesse período, a HBO também se fundiu com a Warner e lançou o streaming HBO Max no Brasil, então eles queriam esperar essas mudanças. Por isso estamos fazendo nossa estreia agora, em 2021. 

EQL: Como foi o impacto de lidar diretamente com as histórias dessas mulheres? 

BL: Foi pesado. Nossa equipe era composta por mulheres – quatro no set o tempo todo. Eu, Carol, Júlia, Gabi e Laura. Várias vezes, eu precisava manter a compostura porque estava de frente com a personagem. Era difícil, mas eu e a Carol, pesquisadora e produtora, já estávamos mergulhadas nas histórias daquelas personagens há um tempo. Já a equipe técnica estava tendo o primeiro contato com aquelas vivências. Quando a gente olhava para trás, elas estavam chorando. Ficamos muito impactadas porque toda mulher – seja casada ou solteira, hétero ou homo – já passou por alguma violência durante a vida. O que aconteceu com a gente foi uma série de epifanias. Nos demos conta de várias violências que sofremos na vida quando ouvimos aquelas mulheres nomeando aquelas violências com tanta tranquilidade. 

É óbvio que as nossas violências não se comparam com as delas, que casaram muito cedo. Elas foram obrigadas a deixar a escola. Sofreram abuso psicológico, abuso sexual e violência parental. As questões são muito mais complexas, mas acho que criamos uma identificação e uma empatia muito forte com elas. Isso fez com que a gente se tornasse uma equipe muito sangue nos olhos para fazer o filme mais potente e bonito possível. Eu acho que foi um filme revolucionário para toda a equipe. Todas nós passamos por revoluções internas após viajarmos pelo Brasil conhecendo essas mulheres e suas histórias. Ninguém saiu igual dessa experiência. Em cada uma bateu de um jeito. 

EQL: Qual a mensagem que você espera passar para os telespectadores com o documentário? 

BL: As meninas periféricas, principalmente as pretas, que são mais vulneráveis à violência, são invisíveis ao Estado. Elas estão no lugar mais rasteiro da nossa pirâmide social e não se enxergam como sujeito de direito. O que acontece é que essas meninas vão perdendo a sua identidade e enxergando no casamento e na maternidade uma forma de status. Uma maneira de se reconhecer como indivíduo em uma sociedade muito vulnerável. Em uma comunidade onde meninas de 12 anos acabam entrando para o tráfico ou para a prostituição para ganhar relevância social e sustento, aquelas que se casam e constituem família são consideradas como figuras que deram certo e se encaminharam na vida. 

Apesar de eu já ter viajado o Brasil todo filmando diferentes conteúdos, muitas vezes a gente acha que casamento infantil é coisa do Brasil profundo. Mas não é. Uma das meninas que entrevistamos mora em uma comunidade que fica a 15 km de Brasília. Está muito perto do centro de poder do país e ainda assim é invisibilizada. Eu espero que, com o documentário, as pessoas entendam que essas meninas precisam ter a chance de viver. Quanto mais cedo elas casam, mais cedo elas assumem a responsabilidade do cuidado com a família enquanto não estão formadas ainda como mulheres e cidadãs. Elas estão expostas a uma série de violências que, no final do dia, resulta em feminicídio ou suicídio. Uma situação que resulta em morte. 

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O que a gente pretende com o filme é passar essa mensagem: essas meninas não podem morrer sem ter o direito de sonhar. Elas precisam estudar. Precisam de creche para colocar os seus filhos. Precisam de absorvente. A essas meninas, principalmente em um governo como o nosso, é destinado o território doméstico. O que as pessoas querem é que elas continuem no ambiente doméstico, o que é uma grande burrice. Mas, em uma sociedade conservadora e preconceituosa como a nossa, o desejo do sistema é que elas permaneçam em casa, parem de estudar, cuidem dos filhos e não gerem renda, dependendo financeiramente de seus maridos. 

EQL: O quanto essa realidade brasileira se aproxima dos países que estão nos três primeiros lugares do ranking? 

BL: Os três primeiros países do ranking de casamento infantil entram nessa estatística por questões culturais e religiosas. Aqui, no Brasil, é por extrema vulnerabilidade. São meninas que sofrem abuso em casa, abandono parental, não têm o que comer. O que elas podem fazer? Elas se casam. É a única instituição na qual elas vêem alguma salvaguarda. Não existe proteção do Estado, então elas mesmas tentam criar um ambiente seguro. Além disso, essas meninas estão em um universo muito restrito. Estão fora da escola. Onde vão enxergar proteção? Apenas reproduzindo o que estão vendo no entorno. As mulheres casadas têm um status melhor na comunidade. Pariu? O status aumenta mais ainda. A mulher ganha visibilidade. 

Enquanto isso, os homens são criados, em sua maioria, para serem os heróis e os protegidos. Os que não têm obrigação com a família e com os deveres domésticos. Eles precisam ser bem cuidados e alimentados para sair de casa e prover o sustento da casa. E essas meninas são criadas para cuidar desses homens. O raciocínio é assim: se eu tenho um filho e tenho uma casa, tenho uma função social. Vou cuidar de alguém e mereço respeito e empatia. É o que resta para elas, que acabam se iludindo com isso. Elas entram em um casamento achando que vai ser um conto de fadas. 

No filme, isso fica muito claro. São sete personagens. Desde a Ruama, de 15 anos, que está grávida e se casando pela primeira vez, até a Ana, que tem 40 e foi casada por 20 anos com um homem mesmo tenho se reconhecido desde sempre como lésbica. Esse casamento foi imposto pela família. Agora, ela está divorciada e finalmente vivendo uma relação homoafetiva. É como se o filme, através de cada personagem, passasse por uma fase diferente do casamento. A Ruama acha que encontrou o seu príncipe encantado, um menino de 16 anos, e que vai ficar com ele para sempre. Já a Roberta se resignou. Ela não tem mais esperança. Diz que vai ficar com o marido para sempre e morrer. E, claro, temos a Ana, que conseguiu sair dessa situação por meio do divórcio e está vivendo a sua identidade em sua plenitude. 

EQL: Como foi construir o enredo do documentário com histórias tão parecidas e, ao mesmo tempo, tão diferentes? 

BL: No começo do filme, você vê uma menina em um chá de bebê toda feliz. Uma adolescente apaixonada. A segunda menina já está casada e com filho e começa a ver sinais de que o casamento não é tão legal assim, mas ainda está agarrada àquela ilusão. Então vamos para um terceiro caso, que é uma menina que, aos 20 e poucos anos, já está sofrendo violência. É a Maria, que usa um nome fictício e não mostra o rosto durante o documentário. Ela se casou aos 13 anos, tem três filhos e está sofrendo com crises de pânico por conta das ameaças de morte que sofre dentro de casa. A Ruama e a Renata, que são as primeiras personagens, ainda não dizem que não casariam. A Maria já diz que nunca teria casado se tivesse tido outra opção. Dali para frente, todas dizem a mesma coisa. Todas fugiram de um inferno achando que chegariam no paraíso. Mas, quando chegaram no paraíso, viram que aquilo ali também viraria um inferno aos poucos. 

EQL: E como foi a sua história como mulher no setor audiovisual? 

BL: A indústria audiovisual é um ambiente muito machista, mas eu tenho notado uma transformação em curso. Uma ascensão de mulheres da minha idade, na faixa dos 40, que estão ocupando seus espaços como diretoras de fotografia, por exemplo, um cargo muito difícil de ser alcançado. Quando eu entrei na área, muitas mulheres eram colocadas em funções estratégicas: sempre produtoras, porque são organizadas e sabem organizar o dinheiro. Sempre o estereótipo do cuidado. Depois, veio uma geração de mulheres estudando roteiros e, agora, temos muitos nomes na direção e na produção executiva. A interlocução está ficando mais fluida porque as mulheres estão virando tomadoras de decisão em grandes empresas. Porém, ainda temos uma estrada longa pela frente. 

EQL: Quando você se interessou por essa área? 

BL:  Eu sou a primeira universitária da minha família. Não tive outras referências. Eu apenas sabia que gostava de televisão. Fiz jornalismo – já que cinema, para a minha família, era um completo delírio -, mas sabia que o meu pé era no audiovisual. Sou da geração que cresceu vendo televisão e hoje produzo de tudo, de conteúdos infantis a séries de true crime. Todos os gêneros. O que importa, para mim, é poder contar histórias. Cheguei na Giros ainda como estagiária quando tinha 23 anos e nunca mais sai. Sou sócia da empresa há oito anos. A única mulher. Aprendo muito com eles, mas acredito que eles também tenham aprendido muito comigo nos últimos anos. 

EQL: Como é ter a oportunidade de lançar o seu primeiro longa-metragem em uma plataforma de streaming já reconhecida? 

BL: Eu fico muito honrada em estrear o meu primeiro longa-metragem na HBO, que sempre foi o meu sonho de consumo. Eu comecei a consumir televisão de qualidade nesse canal, então me identifico muito com o conteúdo produzido. É uma casa que nos dá liberdade de criação e oportunidade para tocar em conteúdos espinhosos. É um espaço corajoso para explorar certos lugares.

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