Aprovada na universidade pública, ex-moradora de rua sonha em ser escritora

Dayana Bárbara viveu nas ruas de Brasília dos oito aos 21 anos e agora celebra a entrada no curso de letras na UERJ
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Entrar na universidade é só o primeiro passo”, diz a ex-moradora de rua e futura universitária Foto: Arquivo Pessoal

No último dia 20 de dezembro, Dayana Bárbara dos Santos recebeu a notícia de que tinha sido aprovada no curso de letras da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). O que para muitos seria um momento de felicidade, para ela foi um misto de alegria e desespero. Mesmo empolgada, ela não sabia se daria conta de estudar e acompanhar o conteúdo.

Aos 36 anos, Danda, como gosta de ser chamada, é atualmente vendedora ambulante e trabalha na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro. Mas ela nunca imaginou que conseguiria entrar em uma universidade pública. Dos oito aos 21 anos, viveu nas ruas de Brasília (DF). 

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Antes disso, conta que não lembra de quase nada da infância, apenas que nasceu no Maranhão e foi, com poucos meses de vida, viver na capital federal.

“Eu só tenho vida de oito anos para cá, porque, antes disso, minha trajetória era narrada conforme os livros da Vara da Infância. Só agradeci a Deus quando meu filho nasceu e agora, com a aprovação no vestibular. Cheguei aonde queria chegar, mas não que seja o final. Entrar na universidade é só o primeiro passo”, diz a ex-moradora de rua e futura universitária. O início das aulas está previsto para o segundo semestre.

A história de Danda ganhou repercussão nas redes sociais no início deste ano, depois que ela publicou um texto em seu Twitter, contando ser ex-moradora de rua e pedindo ajuda para comprar um telefone. Era pelo aparelho que ela estudava.

Violência e a vida nas ruas de Brasília

Nos primeiros anos de vida, já em Brasília, o pouco que Danda sabe é que morou com alguns familiares, mas sem passar muito tempo com nenhum deles. Quando tinha sete ou oito anos, eles a colocaram em um abrigo para menores de idade. Não deu certo. 

“Eles não cuidavam da gente, não davam carinho. Faziam o contrário e o meu ciclo de violência só continuava. Eu lembro que rotulavam a gente como pessoas que nunca dariam certo na vida, mesmo sendo funcionários pagos pelo Estado. Diziam que eu tinha um limite de vida, só até os 18 anos. Eu cresci com esse alarme na cabeça de que não viveria muito”, lembra. 

A saída que ela encontrou foi fugir dos abrigos. “Ninguém escolhe morar na rua. Eu fui porque todos os meus direitos foram violados.”

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Nos mais de dez anos em que passou na rua, ser mulher sempre foi o mais difícil, ainda mais sendo lésbica. “Foi um período difícil. A gente não tem privacidade para nada, é violentada e não consegue dormir direito. As drogas acabam sendo um escape, uma adrenalina. Mas eu também comecei a escrever, mesmo sabendo que estava tudo errado. Sentia que não podia me acomodar.”

Mesmo vivendo naquelas condições, Danda nunca permitiu que a educação deixasse de ser uma de suas prioridades. Aos 14 anos, conseguiu ingressar na Escola Meninos e Meninas do Parque (EMMP), onde estudou até os 20 anos. A instituição é especializada no ensino de moradores em situação de rua e oferece desde a alfabetização até os anos finais do ensino fundamental.

Danda na formatura na Escola Meninos e Meninas do Parque Foto: Arquivo Pessoal

Quando completou 18 anos, ela diz que chegou ao fundo do poço. Não sabia o que era ser maior de idade, afinal, sempre escutou que nunca chegaria até lá. “O Estado não me preparou para depois essa idade. Eu era vagante, não tinha raízes e não ligava para nada. Foi quando meus ancestrais – ou o universo – começaram a me dar sinais de que eu precisava mudar.”

Ela atribui sua primeira grande conquista na vida ao fato de ter engravidado de Arthur, hoje com 14 anos. Danda tinha 21 e esse foi o primeiro passo para sair da rua. Um advogado lhe arrumou um emprego de auxiliar de bibliotecária. “Sempre tive uma ligação muito boa com os livros e com a escrita. Ninguém queria dar emprego para uma moradora de rua cheia de problemas na Justiça, mas ele me ajudou e consegui ficar três anos lá.”

Em 2014, aos 28 anos, ela concluiu o Ensino Médio. Hoje, 15 anos depois de sair das ruas, ela vive com o filho no Rio de Janeiro. Vende queijo na praia das 9h às 19h, praticamente todos os dias. Muitos traumas ainda permanecem, mas a vontade de superar os obstáculos é maior. “Arthur é o motivo de eu estar aqui hoje, é tudo por ele e para ele.”

Escrita, poesia e educação são o caminho

Texto escrito por Danda em 2008 Foto: Arquivo Pessoal

Agora aprovada na UERJ, Danda faz questão de lembrar que sua história não é a regra, mas sim uma exceção. Ela torce para que sirva de inspiração, apesar de entender que os espaços para os que vivem nas ruas e problemas judiciais são quase inexistentes. 

Dados do Cadastro Único, disponíveis até setembro de 2020, mostram que 149.654 famílias se declararam em situação de rua no país. Mas especialistas consideram que esse número não é exato e deve ser muito maior. 

No Brasil, o acesso ao ensino superior ainda está restrito a uma parcela pequena da população. Um levantamento feito pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), em 2019, revelou que somente cerca de 20% da população entre 25 e 34 anos possui um diploma de nível superior. A pesquisa mostrou, ainda, que 40% dos ingressantes em universidades pertencem aos 20% da população com maior poder econômico. E apenas 5% pertencem aos 20% mais pobres.

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Não há um balanço oficial da quantidade de moradores em situação de rua que conseguiram ingressar em uma universidade pública. Mas é provável que seja ínfimo. 

Desde que se mudou para o Rio, há sete meses, Danda conta que estudava pelo celular, cerca de uma hora por dia, quando dava. Ela precisava trabalhar como ambulante para pagar o aluguel e a alimentação dela e do filho. “Nunca tivemos luxo”, diz.

O método era simples, porém trabalhoso: revisar provas antigas disponíveis na internet, assistir vídeos no YouTube, fazer o Enem de todos os anos anteriores e ler textos que eram cobrados no vestibular. Uma de suas inspirações é a filósofa Djamila Ribeiro. 

“Estudei tudo pelo meu celular. E não imaginava que iria passar na prova. Por isso, quando soube da aprovação, me desesperei. Sei que vou apanhar muito lá, a linguagem é diferente e não domino o conteúdo. Mas o mais difícil eu consegui. Entrei”, comemora.

Para conseguir acompanhar o curso, Danda espera conseguir comprar um computador Foto: Arquivo Pessoal

Faltando poucos meses para iniciar uma nova fase da vida, agora a caminho da universidade, Danda diz que além de querer dar uma melhor condição de vida para o filho, sempre soube que a única forma de crescer profissionalmente era por meio da educação. 

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“Quando eu terminei o ensino médio, tentei o vestibular na Universidade de Brasília. Não deu certo. Eu olhava aqueles estudantes novos, que trocam de tênis todos os anos, que têm tudo do melhor proporcionado pelos pais e percebia o quanto o sistema era desigual. Era desesperador pensar que eu tinha que trabalhar o dia inteiro para apenas comprar comida. Isso foi um dos gatilhos que estimulou dentro de mim o desejo de estudar. Nos poemas, eu escrevia o que não conseguia falar.”

E o desejo de estudar não acaba no curso de letras. Apaixonada por futebol, ela também tem vontade de cursar educação física, principalmente para ajudar no preparo do filho, que sonha em ser jogador de futebol, e serviço social. “Não quero ser uma assistente social de gabinete. Quero estar nas ruas, ajudando de forma verdadeira.”

Os planos de Danda são muitos. E a educação está sempre lá. Ela quer juntar dinheiro para comprar um computador para acompanhar as aulas na universidade e se dedicar mais à escrita. “Quem sabe até escrever um livro contando a minha história”, diz. Alguém duvida?

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