Filhas perdidas da vida real: por que priorizar a carreira não deve ser motivo de culpa

Filme da Netflix lançado em dezembro despertou discussões sobre as escolhas da personagem principal, que abdicou da rotina materna
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Filme da Netflix mostra conflito de mãe com a carreira e a convivência com as filhas (Foto: Divulgação)

Enquanto aguardava o nascimento do segundo filho, Ana Homem, 37 anos, percebeu que estava infeliz. O motivo envolvia duas das esferas mais importantes da sua vida – a família e o trabalho. Desde que estreou como mãe, aos 20 anos, a consultora de marketing não havia mais conseguido se dedicar à vida profissional. “Quero ter uma carreira”, pensou, na época. Decidida a sair da inércia daquela situação, a gaúcha encarou o caminho inverso da maioria das mulheres e deixou a maternidade de lado enquanto se concentrava no trabalho.

O conflito se assemelha ao experienciado por Leda, a protagonista do drama “A Filha Perdida”, filme inspirado no romance homônimo de Elena Ferrante – pseudônimo sob o qual se esconde a enigmática autora italiana. Lançado em dezembro, na Netflix, o longa conta a história de uma mulher de meia-idade divorciada que dedica a vida à área acadêmica, mais especificamente a lecionar inglês. Ao saber que suas duas filhas vão morar com o pai no Canadá, a personagem tenta se livrar do lapso de solidão e sai de férias. Enquanto desfruta do hotel, entretanto, sua atenção acaba captada por uma família supostamente “perfeita”, que lhe provoca um sentimento conflituoso sobre suas escolhas maternas.

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No entanto, diferente da ficção, a sensação de culpa não faz parte da vivência de Ana, que é mãe de três filhos. “Prefiro deixar esse sentimento para quando faço algo errado”, brinca. Depois da experiência negativa de focar na criação da primeira filha, hoje com 17 anos, a gaúcha passou a priorizar os compromissos do trabalho, contando, para isso, com uma rede de apoio formada pelas avós e pelo pai das crianças. “Depois que passei a fazer isso, minha carreira deslanchou. Consegui trabalhar numa empresa que eu admirava muito e tive ótimos resultados”, afirma.

Como era esperado, as reuniões, viagens e horas extras tiveram seu preço. Ana lembra que, em 2018, enquanto o filho fazia a apresentação de fim de ano da escola, ela estava a seis horas de distância da cidade, dando  – por coincidência – uma palestra sobre maternidade e profissão para dezenas de mulheres. “Lembro que postei uma foto contando a história e dizendo que estava zero arrependida. Perdi um momento fofo, ok, mas tenho ciência de que meu filho é muito amado por outras pessoas que estavam ali naquele momento”, relata. 

Ao longo dos anos, Ana confessa que a dinâmica de divisão entre a família e o trabalho precisou ser aperfeiçoada. Hoje, por exemplo, a consultora assume que sente dificuldade de conversar sobre alguns assuntos com os filhos, principalmente pela postura independente dos mais velhos. “Eles sempre me viram no comando da minha vida, então agora é mais complicado quando peço algumas coisas”, explica ela, dando o exemplo da primogênita, que não aceitou deixar o trabalho para se dedicar exclusivamente aos estudos, como era o desejo dos pais. Mesmo assim, ela não se arrepende. “Para mim, isso é a definição de boa mãe: uma mulher feliz, satisfeita e com seu tempo bem administrado”, conclui.

Dani Junco, fundadora da B2Mamy, hub de inovação focado em empoderar mães e mulheres por meio da educação, aprendeu essa definição de maternidade com sua própria mãe. “Sempre ouvi em casa que mãe feliz é igual a filho feliz”, destaca. Mas, mesmo para ela, que ouviu esse discurso muitas vezes durante a vida, não foi fácil lidar com os conflitos que nasceram junto com a primeira gravidez. “Eu comecei a questionar a minha vida profissional. Queria saber como ia conciliar minhas tarefas e isso doía muito. Falei sobre o assunto na internet e marquei um café com as mulheres que estavam interagindo comigo. Para a minha surpresa, apareceram 80 mulheres nesse primeiro encontro.” 

A B2Mamy surgiu assim, da percepção de que muitas mulheres passam pela pressão materna em silêncio, com medo do julgamento. “Quando meu filho nasceu, em 2015, minha relação com a maternidade piorou. Ele ficou na UTI por alguns dias e, quando veio para os meus braços, meu pensamento era: eu não conheço essa pessoa. Não foi uma experiência como eu sempre assisti nos filmes e nas redes sociais”, recorda. 

Após três meses de depressão pós-parto e longas semanas de questionamentos, Dani finalmente começou a entender quem era como mãe e profissional. “Foi apenas no sexto mês, mais ou menos, que eu comecei a me conectar com o Lucas.” A tempestade passou, de certa forma, mas isso não significa que todos os momentos sejam mar de rosas. 

Em um exercício de equilíbrio diferente do que Ana pratica, Dani decide todos os dias qual prato deixar cair. Às vezes, é a maternidade que ganha mais atenção. Em outras, é a carreira que merece o foco. Em contato com tantas mulheres pelo trabalho na B2Mamy, ela sabe que não existe fórmula certa quando se trata de maternidade. “No filme ‘A Filha Perdida’, nenhum homem está com os filhos, e todo mundo age super bem em relação a isso. Já quando a mãe diz que deixou as crianças, as pessoas acham um absurdo. É isso que vivemos.” 

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Na luta contra isso, Dani diz que seu grande objetivo é tornar as mulheres livres economicamente, principalmente as mães. “A liberdade financeira nos permite ter um equilíbrio maior sobre a nossa maternidade”, ressalta. Além disso, a criação de uma comunidade para que essas mulheres vejam que não estão sozinhas é essencial. “Quem não se sente cansada e com vontade de correr de vez em quando só está fingindo melhor.” 

SENTIMENTO DE CULPA É HERANÇA CULTURAL

Na psicologia, dilemas como esses são explicados pela expectativa em cima da figura materna. De Pietà a celebridades modernas, a ideia de uma mulher que se doa integralmente ao cuidado com a cria é perpetuado como um ideal a ser seguido pelas gerações. Assim, quando uma delas ousa sair do plano, o sentimento de inadequação logo toma conta. 

Para a psicóloga Sirlene Ferreira, isso acontece por conta de uma inversão de papéis. Ao priorizar um setor da vida que não seja o dos filhos, a mulher passa a dar espaço para seus próprios interesses, desejos e sonhos. E essa nova hierarquia, onde a família não é o centro absoluto, naturalmente passa a ser fonte de culpa, já que a mulher sente que está sendo egoísta por não se doar por completo. “Trata-se de uma questão cultural. A ausência materna ainda é vista por alguns como abandono, e a sociedade culpa a mãe por ter trabalhado 40 horas semanais e não ter presenciado os primeiros passos do filho. Isso é um fato”, diz a especialista.

Desse modo, a sensação de frustração nada mais é do que uma das consequências da romantização da maternidade. Com isso, explica a psicóloga Sandra Viana, muitas mulheres acabam se anulando na tentativa de não gerar trauma nos filhos – ou pior, decepcionar aquilo que a sociedade espera delas como mães. “Muitas mulheres são filhas de mães que não trabalhavam e ensinaram as filhas que elas deveriam fazer diferente. Outras foram criadas por mulheres que trabalhavam fora e não tinham tempo para estar com os filhos. Isso reflete no mundo atual. As mães de hoje querem fazer diferente na tentativa de não gerar dores em seus filhos, mas isso não funciona”, destaca a especialista. 

Essa herança cultural também ajuda a explicar por que esse tipo de sentimento não é tão notado nos homens, por exemplo. Como a maior parte da responsabilidade em relação à criação dos filhos ainda é passada às mulheres, encontrar o equilíbrio entre os interesses pessoais e as demandas familiares acaba sendo uma tarefa mais árdua para elas. “Quando nasce uma criança, ninguém pergunta para o pai se ele pretende continuar trabalhando. Essa pergunta só é feita para a mãe”, afirma Sirlene. 

O que poucas pessoas perguntam, no entanto, é o que gera bem-estar na vida dessa mãe. “Li uma vez no livro ‘Quem Ama, Educa’, de Içami Itiba, que precisamos dar aos filhos tempo de qualidade. Se uma mãe está bem, o filho estará bem. Então, ressignifique este sentimento de culpa para ambos serem felizes”, completa Sandra. 

Para ela, essa é a melhor forma de criar pessoas seguras, confiantes, com inteligência social e postura empática. “Quando se planta boas sementes, bons frutos virão. Se você decide ficar com seu filho e não trabalhar fora, está tudo bem. Se você decide trabalhar fora e ficar mais distante do seu filho, também está tudo bem. O importante é você estar bem com essas decisões, sejam elas quais forem”, conclui a psicóloga. 

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